Capa – Reciclagem: o computador com atitude.

O governo
quer criar centros de recondicionamento de micros para apoiar projetos
de inclusão. E o movimento MetaReciclagem se articula para levar ao
hardware a mesma disposição de autonomia tecnológica que impulsiona o
software livre.
Patrícia Cornils e Verônica Couto

Todos
os anos, cerca 4 milhões de novos computadores entram em operação no
Brasil, em uma base estimada em 10,6 milhões pela IDC Brasil, instituto
de pesquisa. A renovação do parque acontece a cada dois anos, ou menos,
nos casos de contratos de leasing. Contando apenas os computadores do
governo, que movimenta 40% do mercado de aquisições legais, isso
significa que pelo menos 1,6 milhão de máquinas compradas em 2005 serão
aposentadas, daqui a dois anos. Apenas a Caixa Econômica Federal (CEF)
separou para descarte, no ano passado, 27 mil equipamentos. Enquanto o
Banco do Brasil liberou outros 50 mil. Tal volume de máquinas
aposentadas gera, de acordo com Rodrigo Assumpção, coordenador do
Comitê de Inclusão Digital da Secretaria de Tecnologia e Logística da
Informação (SLTI), do Ministério do Planejamento, uma oportunidade
relevante para apoiar a inclusão no país. Ele avalia que o custo de um
computador recondicionado é da ordem de R$ 143,89, enquanto um PC
convencional, no mercado, sai por cerca de US$ 800.

Há outro
motivo para reciclar esses computadores. Cerca de 94% dos materiais
usados nas máquinas são recuperáveis. Se não forem reutilizados, os
computadores viram lixo tecnológico: ocupam espaço nos caros aterros
sanitários ou contaminam solos, rios e lençóis subterrâneos com sua
alta concentração de metais pesados, como cádmio, chumbo e mercúrio. Em
1989, a Convenção de Basiléia – que regulou a movimentação de resíduos
tóxicos entre países – conferiu, ao lixo eletrônico, a categoria de
resíduo perigoso, sujeito ao banimento.

Várias iniciativas visam
a reciclagem de computadores no Brasil. Existe, no governo federal, um
projeto chamado Computadores para Inclusão (CI). Envolve a construção
de grandes Centros de Recondicionamento e Reciclagem de Computadores
(CRCs), idealizados para dar escala à captação de componentes e
máquinas descartadas, formar e capacitar pessoal de baixa renda para
mexer com hardware e software, e para servir de fonte fornecedora de
equipamentos para programas de inclusão digital. A proposta dos CRCs
foi elaborada na SLTI e começa a ser posta em prática no Rio de Janeiro
e no Distrito Federal.

Fora do Executivo, outras duas
iniciativas estão concentradas no aproveitamento social de material de
informática descartado: o MetaReciclagem, movimento descentralizado que
prega a autonomia tecnológica no hardware e no software; e a campanha
MegaAjuda, da regional de São Paulo do Comitê para Democratização da
Informática (CDI), que coleta micros doados e os destina às Escolas de
Informática e Cidadania (EIC) da sua rede. Desde o ano 2000, quando
iniciou a campanha, o CDI-SP recebeu 6,6 mil PCs e 800 laptops.

A
experiência mais adiantada do projeto Computadores para a Inclusão,
segundo Rodrigo Assumpção, da SLTI, é a do CRC do Gama, cidade satélite
da capital federal. O espaço tem 1.080 metros quadrados (de uma antiga
sede da LBA-Legião Brasileira de Assistência) e foi cedido pela Afago,
organização não-governamental (ONG). A execução está sendo coordenada
pela Fundação Banco do Brasil, que conta com outros parceiros, num
modelo de gestão colegiada: o próprio Banco do Brasil, o Ministério do
Planejamento, a Cobra Computadores (doando instrumentos, ferramentas,
mobiliário e know how) e a EFTI-Escola de Formação de Trabalhadores em
Informática, instituição ligada ao sindicato dos trabalhadores de
informática do Distrito Federal (Sindp-DF).

O CRC do Gama deve
estar pronto até o final deste ano. A meta é ter 500 máquinas
recondicionadas no primeiro semestre de operação, adianta Marcos
Fadanelli Ramos, diretor de educação da Fundação Banco do Brasil (FBB).
Depois desse período, espera-se que o CRC produza mil computadores por
mês, destinados a projetos de inclusão social. As configurações dos
micros ainda não estão definidas. “Depende do que vamos reunir de peças
e máquinas”, diz ele que, contudo, assegura a preferência, no caso do
software, por plataformas livres e abertas.

Assumpção,da SLTI,
informa que já estão à disposição do programa do CRC 120 toneladas de
peças, apreendidas pela Receita Federal. E que, dentro do conceito
geral do projeto Computadores para a Inclusão, a decisão sobre o
software vai acompanhar sempre o alinhamento com os ambientes
não-proprietários. Ou seja, essa escolha não ficará a critério das
entidades beneficiadas. Essas, por sua vez, serão selecionadas pelo
conselho gestor do CI – formado por órgãos do governo, ONGs, empresas e
outras entidades que estiverem apoiando seu desenvolvimento. É essa
instância que vai decidir para onde vão os computadores e equipamentos
recondicionados nos CRCs.

Capacitação profissional

Ao
todo, do gerente ao estagiário, serão 74 pessoas trabalhando no CRC do
Gama. Além de uma linha permanente de captação de equipamentos,
reciclagem e montagem de micros, a unidade pretende ter um ciclo
contínuo de treinamento e formação de pessoal. “A idéia é capacitar 12
jovens da comunidade a cada seis meses. Depois, eles vão fazer o curso
técnico da EFTI e, finalmente, seguem para o mercado. Queremos
consolidar, no Centro, núcleos de disseminação desses profissionais
para o mercado de trabalho”, explica Fadanelli. Essa iniciativa tem o
apoio também do Ministério da Educação (MEC).

No Rio, o CRC em
construção ocupa um antigo depósito do Banco do Brasil, com 1.453
metros quadrados, no complexo da Maré. A coordenação é da Rede de
Informações para o Terceiro Setor (RITS), em parceria com o BB, a
Fundação Banco do Brasil, a Cobra, o Ministério do Planejamento e uma
associação comunitária da Maré. A conclusão foi adiada para 2005,
porque o espaço passa por um extensa reforma.

Embora em ritmo
lento – as gestões para o projeto CI começaram no final de 2004 e o seu
orçamento, este ano, foi de apenas R$ 600 mil –, o programa dá seus
primeiros passos. Além dos CRCs do Gama e do Rio de Janeiro, em fase de
implantação, Assumpção afirma que negociações também estão sendo feitas
com indústrias de hardware, como Dell, HP e Itautec; e, para logística
de distribuição, com os Correios, as Forças Armadas e a Confederação
Nacional dos Transportes (CNT) – para estudar o uso do espaço de carga
ociosa das transportadoras.

O modelo de operação do CRC vai
exigir, ainda, uma logística complexa para manejo dos resíduos. A
qualidade do equipamento recebido para doação determina o volume de
dejetos que será gerado – entre duas a nove vezes superior ao de
computadores recondicionáveis. O que significa a necessidade de um
retirada periódica e planejada dos dejetos. “Há uma tendência mundial
de regulamentar as responsabilidades corporativas por esses resíduos, e
as empresas começam a entender, por isso, que os investimentos na
reciclagem fazem sentido”, diz Assumpção.

Fora das ações de
governo, a sociedade civil tem pelo menos dois exemplos que, na medida
de suas ambições – bem diferentes entre si –, atingem seus objetivos no
trabalho com máquinas descartadas: o movimento MetaReciclagem e a
Campanha MegaAjuda, do CDI. O MetaReciclagem não é ligado a nenhum
governo, não é uma empresa, não é nem uma ONG. Trata-se de um grupo de
pessoas que trabalham juntas, oferecendo know how na área de reciclagem
e recondicionamento de máquinas. Além de uma filosofia de ação que
procura, do ponto de vista filosófico, a autonomia e o compartilhamento
do conhecimento. E, no aspecto tecnológico, soluções mais adequadas a
esses princípios. A saber: software livre, thin clients, máquinas e
arquiteturas voltadas para a conexão à internet.

Autogestão na tecnologia

“É
um projeto de tecnologia social, baseado na possiblidade de replicação.
Temos a idéia de que dá para se fazer uma rede com equipamento
reciclado. Questionamos a obsolecência forçada pelo mercado e qual a
tecnologia que estamos usando”, explica Hernâni Dimantas, um dos
articuladores do MetaReciclagem. Esse grupo é parceiro estratégico de
vários projetos importantes de inclusão digital. Entre eles, o do
telecentro Jarinu (SP), criado em parceria com a ONG sampa.org e
mantido pela Associação de Mulheres de Jarinu, com computadores doados
pelo Banco do Brasil e conexão com antena do Gesac (programa do
Ministério das Comunicações). São 30 computadores em rede.

Junto
com os integrantes das comunidades, o pessoal do MetaReciclagem
desmancha as máquinas, pinta gabinetes e monitores, desmistifica a
tecnologia, e refaz os equipamentos, numa oficina que pretende, além de
conhecimento da infra- estrutura, uma forma de imersão – não só nos
processos técnicos de manejo da máquina, mas nos princípios
colaborativos do grupo. A internet tem papel estratégico, e, por isso,
os servidores também. “São um gargalo da rede, sem dúvida”, admite
Dimantas. “Porque preciso bootar (ligar) os terminais num computador
mais potente. Mas aparecem coisas ótimas nos decartes”, conta.

Em
geral, os servidores são negociados em parcerias com os doadores (Banco
do Brasil, sampa.org, etc.), e as demais máquinas, construídas com
partes e peças, para serem thin clients, conectados à rede. Essa é uma
das muitas diferenças entre o programa MetaReciclagem e a Campanha
MegaAjuda, do CDI, atualmente em sua quinta edição. As outras, diz
Dimantas, é que o MetaReciclagem não faz capacitação visando o mercado
de trabalho, mas a relação do usuário com a tecnologia; e só trabalha
com plataformas livres. Mais leve, o software livre roda em máquinas
menos potentes, o que permite o trabalho com equipamentos lowtech:
computadores Pentium são muito bem-vindos, mas máquinas 486, com as
quais se pode trabalhar em rede, escrever textos e trocar e-mails,
também são aproveitadas. Essas máquinas existem em abundância, são
passíveis de reutilização e, principalmente, podem ser abertas e
modificadas. “As pessoas podem abrir, ver o que tem dentro, mexer.
Aprendem mais do que ao lidar com as interfaces dos computadores”,
destaca Dalton Martins, do MetaReciclagem.

O MetaReciclagem não
quer ser uma ONG nem se institucionalizar. “Para que? Já há tantas ONGs
por aí. Queremos espalhar o conhecimento, em esporos, para cada um ir
fazendo o que acha interessante, onde surgir oportunidade”, justifica
Dimantas. Os esporos do movimento, que conta com 15 integrantes mais
ativos, já estão em Arraial da Ajuda, na Bahia, Minas Gerais, Distrito
Federal, Porto Alegre. No momento, estão concluindo uma parceria com a
Prefeitura de Campinas (SP), onde terão mais um galpão de reciclagem,
além do que ocupam na Galeria Olido, no centro de São Paulo, sede de
telecentro municipal e Cibernarium, projeto apoiado pela Comunidade
Européia.

Na comunidade de Sacadura Cabral, uma favela
urbanizada em Santo André (SP), um esporo do MetaReciclagem se prepara
para mesclar um projeto social – um telecentro comunitário e cursos de
capacitação em hardware e software – auto-sustentável com recursos
obtidos pela vendade máquinas doadas e depois recicladas por pessoas da
comunidade. É a versão popular do PC Conectado: computadores
reciclados, com software livre, a preços de R$ 300,00 (Pentium 32 Mb, 1
Giga de disco, floppy disk) a R$ 500,00 (Pentium 64 Mb, 3 Giga de
disco, CD Rom, floppy disc, placas de rede e de som), sempre com
prestações de R$ 100,00 por mês.

O público-alvo dos
computadores são jovens secundaristas, pequenas empresas e escritórios
e domicílios de média e baixa renda. “Se vendermos cinco máquinas por
mês, pagamos nosso custo fixo”, diz Antônio Bento Edson Dias Ferreira,
um dos participantes da iniciativa. O plano de negócios foi feito com
assessoria da Prefeitura de Santo André, e a capacitação em software
livre e reciclagem, por militantes do MetaReciclagem. “Só vai dar
errado se a gente desistir”, diz Antônio Marcos e Silva, da comunidade.

Doação para upgrade

A
Campanha MegaAjuda, por sua vez, não aceita mais equipamentos 386 ou
486. Com a exigência de um padrão mínimo para as máquinas doadas ao
CDI, aumentou a taxa de reutilização dos computadores recebidos,
explica Rodrigo Alvarez, coordenador do CDI-SP. Ela foi de 30% na
primeira campanha, em 2000, e hoje é de cerca de 51%. As máquinas saem
com licenças do Windows, doadas pela Microsoft, e o software livre
Kurumin, um sistema operacional aberto que roda a partir de um CD, sem
ser instalado no disco rígido.

As entidades interessadas em
receber doações inscrevem seus projetos no CDI, que decide como
encaminhar as máquinas, de acordo com critérios como o IDH da área em
que se encontra a entidade e o tipo de projeto proposto. No momento,
diz Alvarez, o CDI está direcionando as doações para uma reimplantação
nas suas escolas existentes, em vez da abertura de novas. “Queremos
ampliar a atuação das 65 EICs de São Paulo, para que se tornem espaços
de informática para a cidadania, não somente com aulas de informática,
mas com uso da tecnologia para acesso livre à internet e por
microempreendimentos”, explica.

A reciclagem dos computadores,
no caso do CDI, se dá principalmente para que as máquinas sejam
aproveitadas por comunidades que não teriam condições de comprá-las. “É
uma questão de viabilidade financeira”, diz o coordenador. A Basf, por
exemplo, acaba de doar 200 computadores, Pentium 3, que não rodam as
novas versões de softwares adotadas pela empresa, mas que servem para
as comunidades. “Não se trata de computadores para pobres, como dizem,
quando nos querem criticar. São máquinas de qualidade”, garante
Alvarez. De acordo com ele, não há nenhuma empresa estatal entre os dez
maiores doadores do CDI, nem interesse da organização em participar dos
Centros da SLTI. “Estamos alguns anos na frente deles. Fazemos isso
desde 2000 e temos nossa própria infra-estrutura”, lembra Alvarez,
referindo-se ao galpão de 600 metros quadrados, na Barra Funda, cedido
pelo governo do Estado de São Paulo para uso do CDI.

www.bb.com.br • Banco do Brasil.
www.planejamento.gov.br
• Ministério do Planejamento, com link para Secretaria de Tecnologia e
Logística da Informação, responsável pelo projeto Computadores para a
Inclusão.
www.fbb.com.br • Fundação do Banco do Brasil
www.efti.com.br

www.afago.org.br
www.cobra.com.br
www.metareciclagem.org.br
www.sampa.org.br
www.rits.org.br
www.cdi.org.br
www.megajuda.org.br
www.idcbrasil.com.br