Vinte anos depois…
em 2010. desde então, a regulamentação da lei se arrasta. Enquanto isso, a economia solidária cresce em torno da reciclagem. No lixo eletrônico, estão os resíduos que podem gerar mais renda. A sociedade vai debater esses temas na Rio +20, que fará um balanço dos avanços sustentáveis vinte anos após a Eco92.
Leandro Quintanilha
ARede nº 81 – junho de 2012
A CONFERÊNCIA internacional Rio +20 acontece enquanto corre um importante processo na legislação ambiental do Brasil: a implementação da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS). Um dos objetivos da lei no âmbito público é acabar com os lixões a céu aberto, em todo o país, até 2014. A ideia é manter apenas os aterros sanitários, destino final dos 10% de resíduos sólidos não reaproveitáveis. No setor privado, as empresas estarão obrigadas a estruturar um Plano de Gerenciamento de Resíduos Sólidos até agosto deste ano. Resta saber se essas metas serão cumpridas, uma vez que a lei, aprovada em 2010 depois de 19 anos de embates políticos, ainda não chegou à regulamentação necessária, que define responsabilidades.
O desafio é enorme. Primeiro, porque a nomenclatura “resíduos sólidos”, que empresta nome à lei, abriga uma grande diversidade de materiais e setores de produção: lixo hospitalar, industrial, nuclear, urbano, alfandegário e de construção civil. O lixo eletrônico – materiais tecnológicos e produtos como computadores e celulares – é particularmente preocupante. Não só pela grande dificuldade de decomposição dos componentes, perigosos e contaminantes, mas também por se tratar de um tipo de descarte complexo, historicamente novo, que requer tecnologias específicas.
Além do mais, não se sabe ao certo do que se trata. O Brasil carece de números sobre o descarte de eletroeletrônicos. “Como antes não havia ações que determinassem a geração de informações, não temos dados de resíduos eletroeletrônicos, tampouco de sua reciclagem”, afirma Zilda Veloso, gerente de Resíduos Perigosos do Ministério do Meio Ambiente (MMA). Zilda revela que essas informações vão começar a ser consolidadas com os Estudos de Viabilidade Técnica e Econômica que estão sendo contratados pelo MMA. No entanto, esses estudos apenas vão atender a exigência legal de demostrar possibilidade da implantação de logística reversa. O sistema de logística reversa deverá ser criado pelos setores envolvidos, principalmente as empresas. O ecólogo, consultor ambiental e ativista Felipe Andueza vê a PNRS como um avanço histórico. “Começou com muito gás e trouxe a atenção da mídia e de grupos organizados da sociedade civil para uma grande discussão sobre lixo eletrônico”, diz. Mas ele se preocupa com o processo de regulamentação, que parece emperrado: “Faltam estudos e metas realistas que façam a coisa andar”.
Sem informação, fica difícil planejar. Um exemplo está na implantação de medidas como a responsabilidade compartilhada pelo ciclo de vida dos produtos eletrônicos, como computadores e celulares. A lei determina que fabricantes, distribuidores e agentes do varejo são corresponsáveis por recolher, encaminhar e processar os produtos que colocam no mercado. Ou seja, um tipo de manufatura reversa e logística reversa, culminando, sempre que possível, na devolução desses materiais à cadeia produtiva ou, em último caso, a aterros devidamente autorizados.
Na avaliação da professora Tereza Cristina Carvalho, engenheira eletrônica por formação e diretora do Laboratório para a Sustentabilidade da Escola Politécnica da USP, “a PNRS é uma das legislações mais avançadas da área no mundo”, pois inaugurou uma nova visão para o assunto, que estaria repercutindo para além do que exige a lei neste momento. “Por força de alguns editais públicos, algumas fábricas brasileiras estão lançando computadores mais verdes, com menos chumbo em sua composição, por exemplo”, ilustra. De todo modo, pondera a professora, ainda faltam reflexão e iniciativas para que a PNRS se torne realidade, o que inclui medidas como o controle do contrabando e da informalidade, a capacitação de catadores e recicladores e o incentivo ao desenvolvimento de tecnologias relacionadas.
“Antes, havia a ideia preconcebida de que seria fácil tratar do lixo eletrônico, tendo como referência materiais como garrafas de refrigerante e caixas de leite”, afirma o pesquisador e fundador da Rede Metareciclagem Felipe Fonseca. “Hoje, há mais gente consciente de que a reciclagem de eletrônicos nem sempre produz recursos suficientes para cobrir os próprios custos e envolve materiais mais perigosos e contaminantes”, alerta.
A esse respeito, Andueza lembra que alguns componentes eletrônicos têm materiais preciosos em sua composição, como ouro e platina. Contudo, extrair esses elementos requer uma tecnologia de que o Brasil não dispõe – aliás, um problema de toda a América Latina. Por isso, essa riqueza exportada para países como China e Índia, onde são melhor aproveitada. Em contrapartida, não há processamento com controle internacional adequado. “Exportamos ao mesmo tempo um problema e uma riqueza”, diz o pesquisador, citando um comparativo emblemático atribuído à Coalizão do Vale do Silício: “Em uma tonelada de celulares sem bateria, há 150 g de ouro, ao passo que uma tonelada do solo de uma mina medianamente produtiva costuma ter apenas cerca de 5 g do metal”.
A associação Compromisso Empresarial para a Reciclagem (Cempre) estima que cerca de 30% do mercado de eletroeletrônicos no Brasil ainda funcionem na informalidade e apenas 14% de todo o lixo produzido no país sejam de fato reciclados. Em 2009, o Cempre criou um comitê de trabalho para acompanhar as discussões sobre a reciclagem de eletroeletrônicos. O grupo é integrado por empresas do setor, fabricantes ou varejistas, como a Intel, HP, Casas Bahia, Dell, Phillips, Walmart, Carrefour, J&J e Pão de Açúcar.
INFORMALIDADE
A informalidade do setor é outro grande desafio. André Luís Saraiva, diretor de responsabilidade socioambiental da Associação Brasileira da Indústria Elétrica e Eletrônica (Abinee), avalia: “O universo dos eletrônicos vai de um pendrive a um satélite. Mas, pelo que entendemos, a legislação não trata de turbinas de aviões ou de usinas hidrelétricas”. Saraiva destaca o problema da pirataria no cenário da logística reversa. Segundo levantamento da Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (Fecomercio), 42% dos consumidores admitem comprar produtos de origem duvidosa. “Todo esse volume não pode ser uma responsabilidade da indústria nacional”, afirma Saraiva.
Para complicar ainda mais o cenário, em 2011 entrou em vigor a chamada Lei do Sacoleiro, que permite que se traga por mês até R$ 110 mil em produtos do exterior, usufruindo de um sistema tributário unificado, isto é, sem uma especificação clara das mercadorias. Para Saraiva, trata-se de uma nova fonte de lixo eletrônico que não deveria ser associada à indústria brasileira. Um terceiro ponto é a Portaria 555, da Receita Federal, que atribui três destinos ao material apreendido pelos mecanismos de controle aduaneiro e fiscal: leilão, incorporação e doação. O descarte de materiais tecnológicos oriundos dessas situações também não seria responsabilidade do setor industrial.
O diretor da Abinee ressalta a necessidade de criação de um documento multidisciplinar que acompanhe cada produto eletrônico, da fabricação ao descarte, para fins de controle legal, tributário e fiscal. Um mecanismo desse tipo facilitaria diversos processos, como conferência, transporte e, por fim, reciclagem. O documento teria ainda de comportar uma transferência de titularidade, possivelmente demarcada pelo número de cada proprietário no Cadastro de Pessoas Físicas (CPF), para quando passasse de uma pessoa para outra.
Saraiva argumenta que produtos eletrônicos não podem ser considerados perigosos apenas por terem sido descartados: “Isso faria com que todos os postos de coleta, por exemplo, tivessem de ser licenciados para recebê-los, entre outros entraves de ordem burocrática”.
Todas essas questões, é claro, são pertinentes ao Comitê Orientador para a Implantação de Sistemas de Logística Reversa, “um órgão deliberativo para decisões no âmbito do governo federal”, nas palavras de Zilda Veloso. O comitê é presidido pelo MMA e composto por quatro outros órgãos com poder de voto: Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior; Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento; Ministério da Fazenda; e Ministério da Saúde.
As reuniões do Comitê podem ser ordinárias (a cada quatro meses) ou extraordinárias (convocadas sempre que necessário). “O comitê tem centrado esforços nos acordos setoriais”, explica a gerente de Resíduos Perigosos do MMA. Foram criados cinco grupos de trabalho temáticos, para estudar cada uma das cadeias de produtos escolhidas como prioridades para a implantação de sistemas de logística reversa: eletroeletrônicos e seus componentes, embalagens plásticas de óleos lubrificantes, lâmpadas fluorescentes de vapor de sódio e mercúrio e de luz mista, embalagens em geral e de medicamentos.
Assim como os demais, o grupo de eletroeletrônicos e seus componentes tem de focar as próprias especificidades: reconhecer as dificuldades inerentes aos produtos e suas cadeias produtivas, para então compreender as necessidades especiais do tratamento de seus resíduos na logística reversa. “O objetivo concreto desse grupo de trabalho é a elaboração de subsídios para a minuta de edital de chamamento relacionado à elaboração de um acordo setorial e para a realização de estudos de viabilidade técnica e econômica da implantação do sistema de sua logística reversa”, esclarece Zilda.
O edital é o primeiro ato público necessário à elaboração do acordo setorial. Possíveis estímulos à indústria e ao varejo só devem ser discutidos após a conclusão desse trabalho, segundo a gerente do MMA: “Somente depois do acordo setorial assinado teremos estímulos para que os eletroeletrônicos sejam entregues e possam ser reciclados ou recuperados”.
Já foi apresentada uma proposta de acordo setorial para embalagens plásticas de óleo lubrificante, que em breve irá para consulta pública. De acordo com o MMA, também logo serão publicados editais referentes à logística reversa de lâmpadas e de embalagens em geral. Os eletroeletrônicos vão ter de esperar. O ministério informa que ainda estão em estudo pelos respectivos grupos de trabalho os editais para eletroeletrônicos e medicamentos, “cujas peculiaridades e complexidades exigem soluções próprias, mais trabalhosas e, por isso, mais demoradas”.
Enquanto a regulamentação se arrasta nos trâmites, uma pequena parte da indústria já faz logística e manufatura reversas. É o caso da fabricante de computadores Dell, que reproduz no Brasil o programa Free Recycling, em funcionamento na maior parte dos países onde a multinacional atua. É válido para todos os produtos da marca, mas restrito a pessoas físicas. Não há nenhum custo para o consumidor. Basta que o cliente entre no site www.dell.com/recycle e siga as instruções. A empresa garante que, assim que o cliente remete o formulário, a equipe avalia a solicitação e dispara o processo logístico. O material coletado é enviado para uma empresa terceirizada, “devidamente qualificada e auditada pela Dell”. De acordo com o fabricante, existe um processo de rastreamento do equipamento desde a coleta no cliente até a sua disposição final.
DUAS ETAPAS
Felipe Andueza lembra que a reciclagem de eletrônicos é feita em duas grandes etapas. A primeira, muito mais conhecida e praticada no Brasil, é a triagem de materiais e o desmonte básico de produtos. A segunda parte é a transformação de componentes em matéria-prima. A terceirização desse descarte é um mercado ainda incipiente, mas já há iniciativas lucrativas no Brasil. Um exemplo bem-sucedido é a Descarte Certo. A empresa foi criada há quatro anos por profissionais oriundos da indústria eletroeletrônica que perceberam uma boa oportunidade de negócio.
Enquanto a legislação ainda se estabelece para a indústria e o varejo, a empresa se dedica à coleta de lixo eletrônico de pessoas físicas. O custo de retirada e encaminhamento para a reciclagem varia de acordo com a complexidade do produto, mas vai de R$ 9, para um celular, a R$ 139, para uma geladeira. “A Descarte Certo nasceu como uma mistura de consciência e conveniência, mas não temos dúvida de que, neste momento, a conveniência fala mais alto”, afirma o sócio-diretor Ernesto Watanabe.
Hoje, a clientela é composta por 40% de pessoas físicas e 60% de pessoas jurídicas, aproximadamente. “Por meio dos nossos diversos fornecedores de logística e manufatura reversa, fazemos uma coleta com baixo custo ambiental e, posteriormente, a desmontagem, a reciclagem e a destinação final de resíduos”, conta Watanabe. Em um de seus clientes, o consumidor pode “adquirir” o descarte de produtos usados e mesmo novos. Ele compra o produto com o serviço hoje, e aciona a Descarte Certo daqui a alguns anos para realizar o descarte. É o que se pode chamar de coleta embarcada.
www.abinee.org.br | www.cempre.org.br
www.dell.com.br | www.descartecerto.com.br
www.lassu.usp.br | www.lixoeletronico.org
www.metareciclagem.org | www.mma.gov.br
GOVERNO APOIA COLETA SELETIVA
O Ministério do Meio Ambiente vai apoiar 153 municípios na elaboração de seus planos de coleta seletiva. A parceria inclui ajuda financeira para montar ou atualizar programas já implantados. Também serão contempladas pela medida do governo iniciativas como desenvolvimento de sistemas de logística reversa, inclusão das organizações de catadores, criação de serviços de atendimento à população e educação ambiental.
Uma das metas é habilitar os municípios para contratar projetos básicos e executivos das principais unidades de manejo de resíduos sólidos: galpões de triagem equipados, veículos para cooperativas de catadores de materiais reutilizáveis e recicláveis, pontos de entrega voluntária, pátios de compostagem, áreas de transbordo e transporte para resíduos da construção e demolição e aterros para resíduos da construção e demolição.
As cidades selecionadas estão nas regiões metropolitanas sedes da Copa e nas regiões metropolitanas prioritárias do PAC.
Municípios com até 100 mil habitantes receberão até R$ 100 mil; os com população entre 100 mil e 500 mil receberão até R$ 220 mil e as cidades com mais de 500 mil moradores receberão até R$ 600 mil.
LIXÕES DO MUNDO
Os destinos finais de grande parte do lixo eletrônico do planeta são países pobres da África, do Oriente Médio e da Ásia, como Gana, Nigéria, Paquistão, Índia e China. Não raro se tem notícias e fotos de containers despejados em praias ou terrenos a céu aberto nessas localidades. Sem controle internacional, os componentes são manuseados por homens, mulheres e até mesmo crianças, que vasculham os rejeitos sem orientação ou equipamentos adequados.
Segundo o pesquisador Felipe Fonseca, da Rede Metareciclagem, essa acaba sendo uma alternativa para países mais abastados se desfazerem de seu lixo. “Hoje, há lixões de eletrônicos em quaisquer países não vigiados. Porque essa é uma forma fácil e barata de retirar os materiais preciosos do lixo, sem ter de tratar todo o material”, explica.
Fonseca destaca também a situação da República Democrática do Congo, em que a economia extrativista (relacionada à produção de eletrônicos em países ricos) está associada a um verdadeiro genocídio civil. A situação chega à mídia mundial muitas vezes retratada como uma guerra entre etnias. Na verdade, o que está em disputa é o acesso ao mineral columbita-tantalita, usado em celulares, turbinas, placas de circuito, lâmpadas, máquinas, ferramentas e condutores eletrônicos.
Por conta disso, os Estados Unidos aprovaram uma lei, em 2010, determinando que os fabricantes que importam o minério têm de dispor de um mapa completo de toda a cadeia de fornecedores. Se for de fato cumprido, esse ajuste pode custar US$ 16
bilhões à indústria estadunidense.
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