O 3 º Encontro de Inclusão
Visual do Rio de Janeiro reuniu oficinas de fotografia, de vários
estados, que buscam desenvolver, nas periferias, a autoria na
construção de suas imagens. Verônica Couto
De acordo com o fotógrafo Zeka Araújo, a fotografia está em cada um, e
cada um conta sua própria história ao fazer uma foto. Descobrir isso e
poder contar sua história — na maioria das vezes, muito diferente da
história que contam as imagens dominantes da mídia sobre as populações
das periferias pobres — é a idéia central do movimento que vem sendo
chamado de inclusão visual.
Milton Guran coordena, desde 2004, os Encontros sobre Inclusão Visual
do Rio de Janeiro, em sua terceira edição, e que reúne projetos de
vários pontos do país, e a mostra FotoRio — Encontro Internacional de
Fotografia do Rio de Janeiro, incluindo iniciativas de fora do Brasil.
Segundo ele, os projetos de inclusão visual atuam em duas principais
linhas, sempre com o objetivo de superar o impacto negativo das imagens
das periferias que preponderam na imprensa. “Primeiro, na auto-imagem,
porque, ao poder se representar, a comunidade ganha em auto-estima;
segundo, na coesão interna do grupo”, diz o fotógrafo, que também tem
doutoramento em Antropologia.
Este ano, ele acredita que os projetos refletiram um amadurecimento —
na formação de bancos de imagens, na elaboração de produtos específicos
(postais, jornais comunitários, etc.) e no desdobramento da construção
da imagem para a intervenção direta. É comum ouvir, nos depoimentos dos
jovens envolvidos nas oficinas, que viram, pelas lentes das máquinas,
lugares e aspectos de suas comunidades a que nunca tinham prestado
atenção. “E o passo seguinte”, conta Guran, “é partir para ação”. Ou
seja, criar mutirões de limpeza, articular cobranças coletivas da
prefeitura ou protestos contra a violência policial.
Máquina Kodak
Violência que está presente, por exemplo, no Complexo do Acari, região
que abrange Acari, Irajá, Coelho Neto e Amarelinho, na zona norte
carioca. Lá, as empresas privadas instalam-se em verdadeiros bunkers
de guerra, amedrontadas com a presença das populações pobres da região.
Situação que se repete onde quer que corra a céu aberto o fosso
econômico do país. Mas, pelo menos numa dessas empresas, uma ação que
articula máquinas fotográficas digitais e criatividade faz um esforço
para apresentar a esses dois universos – o de dentro da empresa e o de
fora – um novo jeito de se olharem. Mirada, a oficina de fotografia
coordenada pelo fotógrafo Zeka Araújo, com apoio da Fundação Ponto Frio
Alfredo João Monteverde, trabalha com uma pauta que busca, como
explicou o próprio Zeka, durante o evento no Rio, “uma cidadania
expressiva”.
Foco subjetivo
Câmera
Nescau. Feita com
lata de achocolatado.São 40 crianças e jovens – de 12 a 17 anos — , em duas turmas de 20 (de
manhã e de tarde), que se reúnem uma vez por semana. Os oficineiros
fotografam suas realidades – a comunidade, o jogo de futebol, os amigos
– e também visitam pontos importantes da cidade, alternando parques e
museus ou centros culturais, “num contraponto à aridez da periferia”.
Um dos eixos da pedagogia que está sendo construída no projeto é fazer
os jovens pensarem artisticamente, subjetivamente. Ou como diria o
fotógrafo francês Henri-Cartier Bresson, entender por que “fotografar é
pôr numa mesma linha a mente, os olhos e o coração”.
Um dos meninos, lembra Zeka, declarou a ele, uma vez, que tinha ficado
“impressionado, quando se deu conta de que poderia existir outra coisa,
outro mundo, diferente desse que é considerado o mundo objetivo e
real”. Ou seja, diferente daquele das imagens dominantes onde ele se
sentia inserido. Por isso, o conteúdo da oficina se estende a história
da arte, da fotografia, do lugar, da geografia do espaço das
comunidades, trabalhando em três eixos – as crianças, a empresa
(quebrar a tensão com a comunidade), a família.
Com aqueles que chegam aos 14 anos, a oficina passa a ter que lidar com
a enorme pressão para que ingressem no mercado de trabalho e tragam
dinheiro para casa. Em alguns casos, os jovens são encaminhados a
estágios. Mas o objetivo do curso não é ser profissionalizante.
“Queremos desenvolver a capacidade artística, expressiva, e levar essas
crianças criativas, deixando que sejam crianças, até onde der”, diz
Zeka. Mesmo assim, no final deste ano, o grupo Mirada pretende vender
camisetas com imagens produzidas nas oficinas, cujos recursos serão
aplicados no projeto.
Zeka Araújo lembra que, no início da experiência, há dois anos, houve
grande resistência dentro do próprio Ponto Frio, que tem, ali, um
quadro de 2 mil funcionários. “A empresa via a comunidade como inimiga;
e se armou violentamente, numa ilha”, diz ele. Após seis meses de
oficina, em que os jovens tiveram autorização para fotografar inclusive
nas instalações corporativas, uma exposição coletiva foi determinante
para distensionar os ânimos. “Agora, as pessoas estão um pouco mais
integradas, já há voluntários fazendo outros trabalhos comunitários, o
clima tornou-se ligeiramente menos hostil. Estão todos mais tolerantes
com as diferenças”, avalia o fotógrafo. A Fundação Ponto Frio atende a
cerca de 500 jovens, com outras atividades socioculturais, que incluem
escola de esportes, oficina de artes, de música, projeto de horta,
cursos de informática, etc.
Flagrantes sublimes
O grupo se dedica, neste momento, a organizar o acervo (construir flogs
com bancos de imagens), e começa a produzir pequenos vídeos no bairro.
Os primeiros oficineiros já contam com comunidade no Orkut, e
estabeleceram um laço estreito de amizade. Os 20 jovens que estão há
mais tempo no projeto têm, cada um, sua própria máquina digital, cedida
pela Miragem (empresa fornecedora de equipamentos fotográficos). Os
mais novos dividem uma máquina por quatro.
Projeto Imagens do Povo
“Fotografia é poder. Quando se dá uma máquina fotográfica a um jovem de
periferia, dá-se a ele um ambiente expressivo, de uma subjetividade
única. É um processo de tensão, porque, aí, também se mexe com a
igreja, as empresas, com tudo que está em torno e espera que esse
jovem não pense”, avalia Zeka Araújo. A inclusão visual vai na direção
oposta – quer que as pessoas pensem e expressem nas imagens as
histórias que elas têm para contar.
3º Encontro sobre Inclusão
Visual do Rio de Janeiro
Não é à toa, explica o fotógrafo e professor Milton Guran, que a
fotografia foi inventada num momento de consolidação da burguesia, para
dar corpo à maneira burguesa de ser. “E demorou 150 anos para chegar à
favela, à periferia”. Como isso aconteceu? “Agora, estamos realmente na
cultura de massa visual. E que colocou em tela a imagem que alguns
setores da sociedade constróem de outros. Com a hegemonia no controle
dos meios de comunicação, esse processo ficou muito marcado, realmente
como um preconceito”.
O que surge, então, é um movimento de fotógrafos para dar visibilidade
à fotografia como “um bem cultural de primeira necessidade”, conceitua
Guran. Para que esses grupos sociais, representados em geral no
contexto das tragédias (inundações, chacinas, confrontos), possam ter
outra representação de si mesmos. “E nós decobrimos que a alegria, o
prazer, o amor filial estão presentes em todo o lugar, inclusive nas
periferas. Ou mais, porque, ao lado das tragédias humanas, há situações
sublimes de solidariedade”.
Quando os meninos do projeto Mão na Lata começaram a fotografar com
latas de Ninho e de Nescau pelas ruas da Maré, no Rio, muita gente não
entendeu, houve até quem achasse que eles estavam “com problemas”. Pois
este ano, o grupo de seis jovens fotógrafos especializados em pinhole,
formados na oficina do Centro de Estudos e Ações Solidárias na Maré
(Ceasm), no projeto Mão na Lata, foram até Paraty lançar, na Flip
(Festival de Literatura de Paraty), o seu primeiro livro de fotografia
— “Mão na Lata e Berro D’água”.
A obra, editada pela Nova Fronteira, é um ensaio fotográfico sobre o
romance “A morte e a morte de Quincas Berro D’ Água”, de Jorge Amado, e
foi todo produzido com máquinas artesanais, as latinhas conhecidas como
pinhole. A editora financiou a ida dos jovens a Salvador. E o trabalho
foi feito durante uma semana, com a coordenação da fotógrafa Tatiana
Altberg, que também pilota as oficinas na Maré, há três anos. O grupo
Mão na Lata é formado pelos fotógrafos Amanda de Paiva Figueiredo,
Angélica Paulo da Silva, Deyvid Ferreira Rocha da Silva, Fagner
Santiago França, Felipe Oliveira de Lima e Renato Rosa Nascimento.
O Ceasm é uma ONG fundada por moradores e ex-moradores da Maré. E a
oficina tem desenvolvido vários projetos coletivos, na busca de um novo
olhar sobre as vidas, as casas, a rotina do bairro e da cidade. No
trabalho com Jorge Amado, o grupo envolveu-se com oficinas de leitura e
interpretação, dramatização e redação; e percorreu Salvador, de latas
na mão, para construir um roteiro fotográfico para a história do
Quincas. Aquele, famoso pelo grito medonho que deu ao virar o copo e
descobrir que, em vez de pinga, bebia água. O trabalho dos autores foi
registrado em vídeo, também apresentado em Paraty.
http://oglobo.globo.com/cultura/fotogaleria/2006/130/default.asp – Para ver algumas das imagens de “Mão na Lata e Berro D’água”.
www.novafronteira.com.br – “Mão na Lata e Berro D’água” à venda por R$ 24,90.
www.centrocultural.sp.gov.br/virtuais/artilust/quincas.htm – Para conhecer algumas serigrafias, feitas por Emiliano Di Cavalcanti, para a mesma obra de Jorge Amado.
Conheça alguns projetos
Casa das Artes da Mangueira – A Associação Casa das Artes de
Educação e Cultura oferece várias atividades. O Núcleo de Registro
Audiovisual oferece oficinas de fotografia, vídeo e produção de textos
para jovens de 12 a 17 anos, na Mangueira, no Rio de Janeiro.
Fotolatando – O fotógrafo Rodrigo Mexas dá oficina para jovens e crianças das comunidades de Santa Teresa, no Rio.
Mirada – Oficina oferecida pelos fotógrafos Zeka Araújo e Vicente Duque Estrada, com apoio da Fundação Ponto Frio e da Mirage.
Zekaraujo@ig.com.br ou vde@infolink.com.br
Imagens do Povo – Projeto da ONG Observatório de Favelas do Rio de
Janeiro, é um centro de documentação, pesquisa e formação de fotógrafos
e documentaristas populares, de banco de imagens e agência de
fotografia. Coordenado pelos fotógrafos João Roberto Ripper e Dante
Gastaldoni. (saiba mais)
Kabum! Escola de Arte e Tecnologia – Mantido pelo Instituto Telemar e
ONG Spetaculu, oferece oficina de fotografia de 18 meses, para jovens
de 16 a 21 anos. Coordenação de Eliane Heeren e Rodrigo Belchior. Na
Bahia, tem parceria da Cipó Comunicação Interativa.
Elihereeren@ig.com.br ou isabel@cipo.org.br
Mão na Lata – Realização do Ceasm, na Maré, no Rio, trabalha potenciais
criativos a partir da fotografia pinhole, ou furo de agulha.
Coordenação de Tatiana Altberg.
Olho Vivo – Projeto da Bem TV, apóia mídias comunitárias em comunidades
de Niterói (RJ). Coordenado por Márcia Correa e Olívia Bandeira de Melo
Outro Olhar – Mostra itinerante de fotos da oficina de fotografia do
programa Fica Vivo, da Secretaria de Defesa Social do estado de Minas
Gerais. A oficina de fotografia atende a 15 jovens, de seis comunidades
de baixa renda em Belo Horizonte. Tem parceria com o Senac (que faz a
parte profissionalizante, enquanto a oficina se cocentra no fazer
artístico) e com a PUC-MG, que fornece equipamentos e infra-estrutura.
As fotos dos jovens foram apresentadas no Museu Histórico Abreu
Barreto. E devem ser levadas a outros espaços públicos de divulgação.
Michelle Soares – coordenadora – micaes@hotmail.com
Sensibilizando o Olhar – Nasceu no FotoRio 2003, numa parceria com a
São Martinho, ONG do Rio de Janeiro que trabalha com crianças e
adolescentes em situação de risco social. Oficinas e exposições,
resultado de fotografias pinhole. A coordenadora é Ana Paula Amorim.
www.saomartinho.org.br ou ap603.anapaula@gmail.com
Foto Favela – Site de fotografia para divulgar o acervo dos
correspondentes comunitários do portal Viva Favela, ou de outros
projetos de inclusão visual. Coordenado por Sandra Delgado.
Lata Mágica – Em Porto Alegre (RS), desenvolve oficinas de pinhole
desde 1999, atualmente em quatro bairros da cidade. Tem apoio
financeiro do ProArte – Fundo de Incentivo à Produção Artística,
mantido pela prefeitura.