Freedom Stick, Tor e as tecnologias do anonimato

A cultura hacker foi decisiva para que o funcionamento da internet fosse baseado na liberdade

A cultura hacker foi decisiva para que o funcionamento da internet fosse baseado na liberdade  
Sérgio Amadeu da Silveira

As Olimpíadas na China, além das maravilhas do esporte e da cultura milenar, alertaram o mundo para a realidade de um sistema político autoritário. Não são apenas os monges tibetanos que são reprimidos em suas manifestações de pensamento e religião. Muitas etnias, minorias, grupos culturais e associações políticas são impedidos de divergir das autoridades centrais de Pequim. Não existe espaço para a discordância. Lá, o poder sempre está certo. A liberdade das pessoas diante do poder é extremamente limitada. Para apoiar os jornalistas que iriam cobrir as Olimpíadas e para permitir que os chineses pudessem se comunicar sem serem perseguidos é que o Chaos Computer Club, grupo alemão conhecido pela sigla CCC, criou um dispositivo chamado Freedom Stick.
 
Desde o início da internet, antes da existência dos microcomputadores, quando a rede ainda era um projeto da Agência de Pesquisas Avançadas (Arpa, em inglês), alguns programadores talentosos influenciados pelos ideais libertários da contracultura norte-americana foram construindo uma comunidade de pessoas altamente capacitadas e fortemente ligadas pelos princípios de compartilhamento do conhecimento e da solidariedade. Assim surgiu a comunidade dos hackers.

Obviamente, a defesa intransigente da liberdade de criação tecnológica e de expressão não agradava as grandes corporações. Com sua força econômica e política, essas empresas conseguiram que a imprensa utilizasse o termo hacker como sinônimo de criminoso e invasor de máquinas. Mas, hackers não são crackers, que buscam obter benefícios ilícitos e pessoais, explorando a ingenuidade alheia ou as falhas de sistemas informacionais. Como afirmou Eric Raymond, autor do famoso livro Catedral e Bazar, os hackers são os responsáveis pela construção da internet.
 
O sociólogo Manuel Castells, autor do livro A Sociedade em Rede, analisa a formação da rede e percebe que a cultura hacker foi decisiva para que o seu funcionamento fosse baseado na liberdade. A ideologia hacker proporcionou que, na internet, a tarefa de controlar seja mais difícil do que a liberdade de se comunicar. Talvez a característica mais fantástica da rede mundial de computadores seja a possibilidade que qualquer pessoa ou grupo competente tem de ir além da criação de conteúdos. As pessoas podem criar novos formatos e novas tecnologias. Se não quer que seu conteúdo transite, você pode inventar um modo de burlar o controle. Isso beneficia algumas atividades ilegítimas e reprováveis, mas o uso quase absoluto das possibilidades de livre criação tem fortalecido práticas saudáveis de liberdade, democracia e colaboração.
 
Compartilhando seu conhecimento tecnológico com quem necessita fugir do vigilantismo anti-democrático, os hackers alemães, reunidos no Caos Computer Club, criaram um aplicativo de fácil instalação em máquinas com Linux, FreeBSD ou Windows, que permite acessar a rede TOR e ultrapassar a “Grande Firewall da China”, ou seja, o enorme filtro de mensagens e bloqueador de acesso a vários sites mantido pelo governo chinês. Esse aplicativo, denominado Freedom Stick, permite que seu usuário consiga acessar um sistema mundial de servidores, executado por voluntários, que impede a identificação da origem dos pacotes de informações que transitam pela internet, ou seja, garante o anonimato de quem está lutando pela liberdade e combatendo a censura das comunicações. Pode ser baixado no site http://chinesewall.ccc.de/freedomstick-en.html e portado em um pendrive.

Para despistar

O Freedom Stick codifica os dados e por diferentes rotas de servidores dentro da rede Tor, tornando inúteis quaisquer esforços de rastreá-los ou de descobrir sua fonte. Como todos precisam de um endereço IP (Internet Protocol) para navegar na rede, não era difícil para a polícia política descobrir o computador de origem de uma mensagem. O aplicativo da rede TOR age como um embaralhador de endereços IP.
 
O Tribunal Constitucional Federal alemão criminaliza o uso de aplicativos TOR, o que dificulta o trabalho de voluntários que apóiam os movimentos contra as ditaduras e sistemas políticos totalitários. Björn Pahls, do CCC, afirma que a “censura na China é um sintoma de um estado de vigilância que tem sido apoiado tecnologicamente pelas sociedades ocidentais”. Pahls fez um apelo às autoridade alemãs “para parar de penalizar os operadores de servidores da rede Tor. O comportamento das autoridades é altamente prejudicial para as pessoas que vivem submetidas a Estados opressores, suas vidas estão em risco. China é apenas um dos muitos exemplos”.
 
Ian Clarke, criador e programador principal da rede Freenet, deixa claro a importância do anonimato nas redes de comunicação: “Você não pode ter liberdade de expressão, sem a opção de permanecer anônimo. A maioria dos atos de censura é retrospectivo. É geralmente muito mais fácil, para a limitar a liberdade de expressão, punir aqueles que a exerceram; ao invés de impedi-los de fazer, em primeiro lugar. A única forma de evitar isso é o anonimato”. Por isso, o TOR é fundamental para a liberdade de expressão e criação nas redes. Em seu site principal, www.torproject.org, os organizadores do projeto explicam: “Tor é um software que o proteje contra análise de tráfico, uma forma de vigilância que ameaça a liberdade e privacidade, negócios confidenciais e relacionamentos, e a segurança de Estado. Tor proteje você distribuindo sua comunicação por uma rede de voluntários transmissores ao redor do mundo: isso previne que alguém monitore sua conexão e veja que sítios você acessa, e também previne que descubram sua localização física”.
 
Quem está usando TOR? Entidades de defesa dos direitos humanos, como Human Rights Watch; organizações que defendem ou praticam a liberdade de expressão, como a Global Voices, um projeto de mídia fundado pela Harvard Law School’s Berkman Center for Internet and Society, e a Eletronic Frontier Foundation, que luta pelas liberdades civis na rede; associações de jornalistas que precisam driblar a censura, como os Repórteres sem Fronteira; blogueiros dissidentes de regimes totalitários, entre tantos outros.


Sérgio Amadeu é sociólogo, considerado um dos maiores defensores e divulgadores do software livre e da inclusão digital no Brasil. Foi precursor dos telecentros na América Latina e presidente do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação.