Onde os pingüins se divertem

Quase todo mês tem install fest, ou festa de instalação de Linux. Elas surgem de forma pulverizada, de Norte a Sul do país, e levam a cultura do software livre para além dos redutos técnicos, articuladas com ações de inclusão digital.


Quase todo mês tem install fest, ou festa de instalação de Linux. Elas surgem de forma pulverizada, de Norte a Sul do país, e levam a cultura do software livre para além dos redutos técnicos, articuladas com ações de inclusão digital. Verônica Couto

Install fest quer dizer festa (ou festival) de instalação – e é quase impossível navegar entre as comunidades de software livre (SL) sem ouvir falar delas. As festas surgem espontaneamente, por iniciativa de ativistas, em universidades, organizações não-governamentais, entidades comunitárias. Acontecem em vários lugares do país – na capital paulistana, em Petrolina, em municípios pequenos do Rio Grande do Sul, no Rio de Janeiro, Minas Gerais, Florianópolis, Goiás, em qualquer lugar. Aliás, devem estar acontecendo agora, porque quase todo mês tem install fest por aí. Às vezes, elas surgem vitaminadas, dentro de megaeventos, como o Festival de Instalação Latino-Americano de Software Livre (FliSol 2006), realizado no dia 25 de março, em 12 países, inclusive no Brasil (em 23 cidades). Ou no Fórum Internacional do Software Livre (Fisl), cuja sétima edição vai do dia 19 a 22 deste mês, em Porto Alegre (RS).


Cleber de Jesus Santos, instala Ubuntu na Casa Brasil de Guarulhos.

O principal objetivo das install fests é espalhar a cultura do software livre. Nelas, técnicos e programadores voluntários ficam à disposição do público para instalar, nos computadores de quem queira, distribuições Linux – Ubuntu, Kurumin, Debian, Suse, Mandriva, Slackware, Fedora, entre outros pacotes de aplicativos para sistemas abertos. As pessoas levam de casa seus equipamentos – apenas a CPU, às vezes com teclado e mouse, mas sem o monitor – e, ao lado do voluntário, acompanham a instalação do sistema na máquina. A participação nas install fests é aberta e gratuita. É recomendável, contudo, fazer inscrição prévia, geralmente por meio de sites na internet, para que os organizadores possam dimensionar o número de voluntários mobilizados, de acordo com o total de participantes e máquinas.

A forma de organizar uma install fest reflete o próprio modelo de desenvolvimento do software livre. É descentralizada, colaborativa, eclética. Um coordenador de telecentro pode resolver fazer uma install fest na sua comunidade, como aconteceu na Casa Brasil de Guarulhos (SP), no início de março. Ou a iniciativa pode vir de um grupo de profissionais de informática, como no caso da Tritec, empresa júnior da Unicamp, que participou do FliSol em Florianópolis (SC). É um espaço onde o especialista tira dúvidas sobre plataformas que ainda não domina; e onde o usuário leigo descobre como mexer no básico do software, podendo substituir, sem custos de serviço, uma cópia pirata de um programa proprietário por uma plataforma livre e legal. E onde se articula a tecnologia com programas de inclusão digital.

Desde 2005, por iniciativa de um grupo de usuários argentinos, acontece o FliSol – Festival Latino-americano de Instalação de Software Livre. No ano passado, envolveu install fests simultâneas em mais de cem cidades da América Latina, sendo 30 delas no Brasil, onde cerca de 200 máquinas foram levadas por usuários para instalação de distribuições Linux (o maior número delas em Fortaleza).

O coordenador do FliSol deste ano no Brasil (em 23 cidades), foi Felipe Augusto van de Wiel (conhecido como Faw), administrador de redes, de 23 anos. Seus primeiros contatos com o software livre foram no curso técnico do segundo grau, feito em escola particular de Curitiba (PR), em 1998. Em 2003, juntou amigos para formar o Grupo de Usuários Debian do Paraná, que reúne 200 inscritos na lista de discussão, e deve ser freqüentado por um total de 500 pessoas, incluindo interessados menos atuantes. Muitos deles ajudam a comemorar outra data marcante, com install fests em 30 cidades: o Dia D – 16 de agosto, quando se celebra o aniversário do Debian.

Segundo Faw, a origem das install fests remonta aos clubes de computadores surgidos na Europa e nos Estados Unidos, principalmente na década de 80, para trocar programas. Nos anos 90, vieram as install fests, estimuladas pelo sucesso do Linux e fortalecidas pela comunicação via internet. Hoje, tornaram-se ponto de encontro para realizar as migrações coletivas de sistemas, e, associadas às práticas comunitárias de telecentros, podem se transformar num meio extremamente popular de acesso a serviços técnicos. De acordo com o diretor de produtos e canais de treinamento da Mandriva Conectiva, Rodney Miyakawa, a empresa realiza, mundialmente, uma vez por ano (novembro), sua própria festa de instalação. Em 2005, no Brasil, foram convocados técnicos em 50 cidades, para atividades que reuniram 3 mil pessoas. O resultado: cerca de mil instalações concluídas.

Tudo numa install fest funciona a partir do trabalho voluntário. Para cerca de 50 máquinas, num expediente de oito horas, Faw recomenda a mobilização de, pelo menos, dez técnicos. Melhor se forem 30 – que poderão, assim, se dedicar “a fixar a cultura do software”, assegurando que o usuário adquira alguma familiaridade com o sistema. “Estamos criando uma demanda, e as pessoas, em geral, não tem paciência para ler manuais. Por isso, é preciso tempo com elas”, justifica. Quando essa interação se dá de forma consistente, os donos das máquinas voltam em outras install fests para tirar dúvidas, avançar na aplicação, resolver problemas.


Como fazer uma festa


Voluntários do FliSol 2006, na sede
da Sucesu, em São Paulo.
Faw calcula que uma install fest custe pouco mais de R$ 1 mil. Esse total inclui, em valores médios, R$ 200,00 em alimentação para 30 técnicos, e cerca de R$ 750,00 a R$ 800,00 para produção de 2 mil panfletos e 200 ou 300 cartazes. “Mas vive-se sem isso. Desde que haja um servidor de rede, um depósito, um espaço, dá-se um jeito”.

Na opinião do coordenador do FliSol, também é importante que os organizadores estejam associados a uma figura jurídica – uma universidade, uma OnG legalmente constituída, uma empresa, até para facilitar outros apoios. E os promotores da festa devem imprimir um termo de responsabilidade (há modelos disponíveis na internet), para ser assinado pelos usuários. O ideal, diz Faw, é que o técnico não abra a máquina (só se for imprescindível). E que o usuário seja orientado a fazer um backup prévio de todos os seus dados, em outra máquina ou em CD. Se puder, que ele leve também CDs virgens, junto com a máquina, para a instalação de mais aplicativos de seu interesse (jogos, programas educativos, de tratamento de imagens, etc.).

A relação entre os organizadores e os voluntários não é informal. Pedro Moura, professor do Departamento de Processamento de Dados, da Faculdade de Tecnologia de São Paulo (Fatec), que organizou uma install fest na instituição, em dezembro do ano passado, afirma que um contrato de voluntariado deve ser assinado pelas partes, deixando claro os serviços que serão prestados pelo técnico, durante um número determinado de horas, sem remuneração.

Na opinião do professor, um dia de treinamento permite ao técnico saber onde estarão os cabos, os equipamentos, os monitores, os CDs, quais as salas que poderão ser ocupadas, quais distribuições serão usadas. A reunião de preparação serve, ainda, para organizar a logística de recebimento das máquinas e da fila de atendimento – em geral, com senhas entregues na hora da chegada, quando o usuário preenche um cadastro com seus dados. Na maioria das festas, como a da Fatec, não há restrições a programas – o voluntário instala a distribuição que quiser. Outras trabalham com regras, como no FliSol, que não aceita pacotes com componentes não-abertos (Java, por exemplo, no Kurumin e no Ubuntu).

O espaço escolhido para uma install fest, segundo Moura, da Fatec, precisa de infra-estrutura para instalação das máquinas – com boa rede elétrica, conexão à internet, bancada, mesas, monitores. Por isso, muitas são realizadas em universidades. E, mais recentemente, também em escolas de segundo grau e telecentros. Além do lanche ou de um café, os organizadores costumam levar CDs das distribuições para serem entregues aos usuários, brindes ou material promocional (pingüins, camisetas, bottons) para vender ou distribuir.

O principal canal de divulgação das install fests são as listas das comunidades de software livre (veja os links). No caso do FliSol, Faw conta que o evento também foi anunciado por meio de panfletagens públicas e em cartazes fixados em 12 faculdades de Curitiba, e em órgãos do governo do Estado do Paraná – Celepar (companhia de processamento de dados), Casa Civil e outras secretarias. Para as próximas, ele prepara uma ação dirigida ao terceiro setor, a escritórios contábeis, entidades de classe e sindicatos profissionais de categorias como médicos, advogados, dentistas, jornalistas. A Fatec, no ano passado, também buscou a diversificação do público e fixou cartazes nas estações de metrô da capital paulista.

Disseminar o software livre entre novos perfis de usuários pode ser o pulo-do-gato para multiplicar a escala e a dimensão das festas, em que ainda predominam estudantes e profissionais de computação. Para Jansen Carlo Sena, sócio-fundador da OnG Comunidade SOL (Software Livre), de Manaus, a incorporação à cultura livre de outros grupos sociais é uma tendência natural. Explica-se pela inserção dos princípios do conhecimento compartilhado em ações de inclusão digital e pela própria dinâmica do movimento. “A comunidade do SL tem traços comuns, por exemplo, com as comunidades indígenas, que há muito tempo funcionam no modelo colaborativo”, compara.


Inclusão digital

Essa afinidade se tornou evidente para ele, diz, quando viu uma apresentação musical promovida por membros da comunidade Bayaroa, formada por dez etnias indígenas do Amazonas, a maioria Tucano. “A música nunca é tocada por uma pessoa só; um grupo toca uma nota, e espera outro continuar. A música só se completa, se tocada de forma compartilhada. Da mesma maneira, dificilmente, uma pessoa sozinha terá força para manter um código livre, o que é feito por uma comunidade de colaboradores”, explica Jansen.


Install Fest na Fatec: 300 inscritos.
Ele convidou os representantes de Bayaroa para um encontro do software livre na região, e também envolveu artesãos da pequena comunidade amazonense de Livramento no aproveitamento de argila para confecção de pingüins, que são vendidos durante os eventos. São estratégias para articular a inclusão digital ao eixo do software livre, que engajam o voluntariado em outros programas sociais. O Grupo de Usuários Debian do Paraná, por exem­plo, apóia espaços comunitários que estão sendo criados para acesso à internet, nos bairros de Vila Torres, Boqueirão e Alto da Glória, em Curitiba. No FliSol de 2005, em Fortaleza, 500 quilos de alimentos (solicitados como pré-requisito para a participação nas palestras técnicas) foram doados ao Lar Torres de Melo, que atende pessoas da terceira idade. Moura, da Fatec, apoiou a criação de um laboratório de acesso à internet na Favela do Sapo, zona norte de São Paulo, com micros doados pela Intel. E acredita que o programa federal Computador para Todos, que subsidia financiamentos para compra de micros até R$ 1,4 mil, vai aumentar a demanda nas festas de instalação.

Diversificar as atividades também contribui para trazer às install fests públicos não-técnicos. Com esse objetivo, em Manaus (AM), a Comunidade SOL passou a incentivar oficinas temáticas. A OnG promove o terceiro maior encontro regional de software livre do país – o Eslam (Encontro de Software Livre da Amazônia), que, em outubro de 2005, reuniu 1,1 mil participantes na capital do estado. Segundo Jansen, uma das novidades bem-sucedidas foi a oficina de instalação, criada há três anos.

Mão na massa

“Sentimos que as pessoas tinham medo de trazer os micros e de nos deixar mexer neles. Por isso, passamos a fazer oficinas para que os usuários pudessem aprender, eles mesmos, a instalar as distribuições em máquinas cedidas por universidades parceiras (no caso, a Uninorte)”, explica. Nesse caso, o interessado instala uma ou várias distribuições, testa, descobre como configurar, e pode reproduzir o processo em casa. Atualmente, diz Jansen, a maioria faz as duas coisas – deixa a máquina com um voluntário para receber a distribuição, e vai assistir à oficina de instalação.

A Comunidade SOL também ofereceu, no Eslam de 2005, uma oficina de vídeo, que atraiu estudantes e profissionais da área de comunicação. Os oficineiros gravaram imagens e entrevistas do encontro e, ao final, editaram um vídeo com ferramentas de software livre, que foi exibido no encerramento. Além disso, a programação do encontro incluiu apresentações com foco nas aplicações – software livre no poder público e na iniciativa privada, para trazer ao evento profissionais do distrito industrial de Manaus, onde está instalado o Instituto No­kia de Tecnologia – patrocinador do Eslam e importante contratador de mão-de-obra especializada em software livre, plataforma embarcada nos aparelhos celulares da marca.

O ativismo das comunidades do software livre faz nascer na sociedade uma capacidade prática para se mobilizar rapidamente e com poucos recursos. Convidado a dar uma palestra em Santarém (PA), Jansen lembra que encontrou uma audiência tão interessada que, em três meses, os seus ouvintes organizaram uma “caravana” para participarem do Eslam, em outubro. O grupo de 30 pessoas foi de barco para Manaus, numa viagem de dois dias e meio – e se tornou conhecido como o pessoal da “paravana” (caravana do Pará). “Até onde sei, foi a primeira caravana fluvial do movimento do soft­ware livre”, comemora ele.

Receita de bolo em Guarulhos


José Bezerra: aprender
para ensinar jovens que
queiram “ir para a frente”.
O código-fonte está para um software, como uma receita está para um bolo de chocolate. A comparação, para explicar a importância de se trabalhar com programas abertos, em que a “receita” seja conhecida (ou não-proprietária), foi feita por Eduardo Lisboa, programador e voluntário que participou do primeiro install fest realizado na Casa Brasil Água e Vida – Telecentro de Inclusão Digital (TID-Petrobras), em Guarulhos, no final de fevereiro. No encontro, dez máquinas de moradores da região receberam a distribuição Ubuntu.

Jesulino Alves de Souza, coordenador regional do programa Casa Brasil/TID Petrobras, diz que esse é apenas o primeiro de uma série de eventos de instalação de soft­ware livre que devem ser programados para os telecentros das unidades do Casa Brasil (dos 50 apoiados pela Petrobras, 27 já estão funcionando e, junto com os demais, devem ser inaugurados oficialmente até maio). Um dos presentes à festa de Guarulhos foi o pernambucano José Bezerra das Chagas. Hoje com 62, ele fugiu de casa aos 13 anos e desenvolveu, sozinho, um incrível talento para a engenharia. Tornou-se dono de uma mecânica de automóveis e o seu hobby é montar computadores a partir de partes e peças de máquinas refugadas.

“Monto dez a 15 micros por semana, nos sábados, até três de uma vez”, conta. Depois, seu José escolhe jovens que precisem e que ele considere “interessados” e doa os equipamentos. “Não dou para gente burra”, avisa. Ele foi ao install fest da Casa Brasil porque não conhece Linux, e busca uma opção sem custos, legal e eficiente, para os micros recondicionados. “Se aprender a mexer, também posso ensinar aos jovens que queiram ir para a frente”, afirma.

Quem quer ir para a frente é Daisy Eliana Santos Silva, dona-de-casa, 45 anos, que foi à install fest com a CPU num braço e o filho de quatro anos no outro. “Gosto de computador. Trabalho para o meu marido, que dá aula de Educação Física, e também para a diretoria do Sindicato dos Bancários, onde fiquei sabendo do evento. Mexo com planilha, faço relatórios, vou aprendendo”, diz ela. Por que o Linux? “Porque já peguei muito vírus, e sei que, em distribuições Linux, isso não acontece”.



www.debian-rs.org/install-fest-howto • Como montar uma install fest, do Grupo de Usuários Debian do Rio Grande do Sul. Bastante detalhado, com modelo de termo de responsabilidade, dicas para organização, relação de equipamentos necessários, etc.
www.softwarelivre.br • Portal do Projeto Software Livre Brasil (PSL-Brasil).
www.debian-pr.org.br • Grupo de Usuários Debian do Paraná.
http://installfest.info/brasil • Site oficial do Festival Latino-americano de Instalação de Software livre (FliSol 2006).
http://pt.wikipedia.org/wiki/installfest • Verbete da wikipedia sobre install fest.
www.comunidadesol.org • Comunidade Software Livre (SOL), de Manaus (AM).
http://br.groups.yahoo.com/group/slackwarenaveia/
www.slackwarenaveia.org • Os dois endereços dão acesso a listas de discussão sobre o Slackware, uma das distribuições Linux.
http://www.guxlle.org/ • Grupo de Usuários Linux de Joinville.
www.br-linux.org • Lista para discussão sobre Linux.
treinamento@wpc.com.br • A S2M-WPC Consultores é uma empresa de ex-alunos da Fatec-SP, especializada em Linux. Bom canal para divulgar install fests.
http://wpc.com.br/fest.php • Sobre o Fatec Linux Install Fest.
http://www.ceset.unicamp.br/tritec • Tritec, empresa-júnior da Unicamp, em Limeira (SP).
http://www.dicas-l.com.br • Lista de informação (não de discussão), com dicas sobre Linux, linguagens de programação, etc.
http://www.vivaolinux.com.br/ • Artigos de leitores, comunidades e listas de discussão.
http://br-linux.org/ • Notícias, tutoriais e artigos.
http://listas.cipsga.org.br/ • Reúne listas de discussão sobre software livre e inclusão digital; do Centro de Incentivo à Produção do Software GNU e Alternativas (Cipsga).
http://listas.softwarelivre.org/ • Muitas listas sobre software livre.
http://twiki.softwarelivre.org/bin/view/PCLivre/WebHome • Site colaborativo dos voluntários do grupo PC Livre, que apóia o programa Computador para Todos.
http://listas.softwarelivre.org/mailman/listinfo/pclivre • Articulações para suporte comunitário ao Computador para Todos, ainda chamado no site de PC Conectado.