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Espião à espreita

PARLAMENTARES DOS ESTADOS UNIDOS APROVAM LEI QUE INSTITUI
A CIBERESPIONAGEM E O COMPLETO RASTREAMENTO DIGITAL
SERGIO AMADEU DA SILVEIRA


ARede nº 80 – maio de 2012

QUEM É deslumbrado com o mundo da tecnologia, e acredita no esquema maniqueísta básico que considera as empresas “boas” e os políticos “maus”, precisa dar uma olhadinha no que aconteceu com o Cispa (Cyber Intelligence Sharing and Protection Act ou, em português, Ato de Proteção e Compartilhamento de Ciberinteligência). Essa lei estadunidense permite que seus e-mails, suas ações e sua navegação na rede sejam completamente vigiados e armazenados sem que você sequer perceba. Quem propôs a lei foi o deputado republicano Mike Rogers, um dos principais apoiadores do ato de exceção estadunidense chamado Patriot
Act, que permite ao governo agir arbitrariamente para combater possíveis ameaças terroristas. Em entrevista a uma rádio, em agosto de 2010, ele propôs a execução dos traidores que vazaram as informações divulgadas pelo WikiLeaks.

Rogers é um típico político republicano dos velhos tempos da guerra fria. Ele acredita no uso ilimitado da força para manter o poder dos Estados Unidos da América (EUA). No dia 26 de abril, a Câmara dos Estados Unidos aprovou o Cispa. Trata-se do polêmico projeto de lei que dá às empresas de provimento de acesso e conteúdo permissão para armazenar e trocar informações de usuários. Também permite que provedores entreguem ao governo, sem ordem judicial, informações confidenciais dos usuários. O presidente dos EUA, Barack Obama, se opunha ao projeto. Apesar disso, a Câmara aprovou a lei, por 248 votos a 168.
Caso não seja vetada, a lei dará poder sem limites claros para o governo dos EUA proteger suas redes contra ataques cibernéticos. Também garantirá as patentes e os direitos de propriedade intelectual das empresas estadunidenses.

Como uma lei que viola a privacidade tão brutalmente pode passar pela Câmara dos Estados Unidos? Como um republicano pode conseguir a maioria dos votos contra a vontade do próprio presidente?

As propostas do Sopa (Stop Online Piracy Act) e do Pipa (Protect IP Act) exigiam uma série de obrigações para as empresas de internet e focalizava claramente os mecanismos de compartilhamento de remixagem de arquivos digitais. Já o Cispa afirma que seu objetivo maior é dar informações para o governo agir contra os terroristas e ladrões de propriedade intelectual no país. Uma das razões do seu sucesso é que o projeto foi apresentado como necessário à segurança nacional, tema extremamente mobilizador dos corações da maioria dos parlamentares.

Mas a resposta principal está na lista dos apoiadores do projeto do deputado Rogers. A lei foi aprovada com o apoio de Facebook, Microsoft, Intel, IBM e Oracle, que têm interesses claros em utilizá-la contra concorrentes estrangeiros. Imagine o que acontecerá com os e-mails trocados entre funcionários de uma empresa que disputa uma licitação contra a Oracle ou a Microsoft. Pense nas enormes possibilidades que a lei dá para a poderosa indústria de medicamentos estadunidense, que poderá monitorar todas as ações das indústrias de genéricos, facilmente passíveis de serem acusadas de violação de patentes dos Estados Unidos.

Quem comemorou a aprovação do Cispa foram as associações da indústria de copyright (RIIA, MPAA, BSA etc.) que acreditam ter conquistado um novo instrumento para ameaçar os internautas. Todos sabem que as redes digitais consolidaram as práticas de compartilhamento. As redes P2P são utilizadas por milhões de internautas para trocarem arquivos de músicas e vídeos. Quase a totalidade dessas trocas é sem fins comerciais e sobre elas não cabe, em nenhuma hipótese, a acusação de pirataria. Todavia, os traficantes do copyright sonham em poder processar os jovens que baixam música. Ou, no mínimo, acreditam que sabendo o seu
e-mail e o horário em que baixou uma determinada música, poderão intimidá-lo e convencê-lo a nunca mais compartilhar arquivos digitais.

As corporações estadunidenses perceberam que o Cispa aumentaria seu poder de obter informações, sem nenhum compromisso ou responsabilidade. Desse modo, viram que a lei poderia ser até mesmo útil em sua estratégia comercial.

O Cispa não pode ser compreendido em um cenário simplista e maniqueísta, pois as “simpáticas empresas” do mundo 2.0 também jogaram pesado por sua aprovação. Por isso, é importante denunciar as ações dos políticos retrógrados e vigilantistas, sem esquecer que eles só puderam obter a maioria com o apoio decisivo de seus financiadores, empresas como a Microsoft, Oracle e IBM, entre outras.

Sergio Amadeu da Silveira é sociólogo e um pioneiro na defesa e divulgação do software livre e da inclusão digital no Brasil. Foi presidente do Instituto Nacional de Tecnologia da Informação.


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