Túlio Vianna: “proposta de reforma da LDA poderia avançar mais”.

O professor da UFMG explica que o direito internacional permite que se estabeleça limitações aos direitos autorais e que a lei brasileira pode fazê-lo, desde que não fira acordos internacionais.

12/08/2010 – Túlio Vianna, professor de Direito Penal da Faculdade de Direito da UFMG, publicou em seu blog um artigo sobre a proposta de reforma da lei de Direitos Autorais. A proposta foi colocada em consulta pública pelo Ministério das Comunicações. A consulta está aberta até 28 de julho e o tema é fundamental para quem se preocupa com o direito de acesso a cultura e a informação.

O artigo de Vianna é sobre a relação entre a legislação brasileira e os acordos internacionais. ele avalia que o texto em debate é “muito tímido nas reformas propostas e é possível avançar bem mais”. Principalmente no artigo sobre cópias de livros por xerox, que aparenta ser um avanço mas que vai obrigar as lojas de cópias obter autorização dos detentores dos direitos autorais dos livros. Se você ainda não está acompanhando este debate, é uma boa maneira de começar. Não precisa ser advogado para entender o artigo. Veja abaixo:

“O Ministério da Cultura abriu consulta pública para a modernização da lei de Direitos Autorais com o intuito de permitir que qualquer cidadão opine sobre os rumos da política de direitos autorais no Brasil. A iniciativa é louvável, mas o texto-base apresentado para o debate é muito tímido nas reformas propostas e é possível avançar bem mais.

É preciso que fique claro, antes de tudo, que qualquer reforma na lei de Direitos Autorais brasileira precisará respeitar o disposto na Constituição brasileira e nos tratados internacionais sobre o tema em que o Brasil é signatário, como as convenções de Berna, de Genebra, de Roma e o TRIPS. A defesa de propostas incompatíveis com estes tratados equivale, na prática, à perda de tempo e de esforço político. É importante, então, que os ativistas e interessados em geral estejam atentos ao que pode e ao que não pode ser mudado na lei de Direitos Autorais brasileira para que a discussão gire em torno de propostas pragmáticas.

1. DESCRIMINALIZAÇÃO

Atualmente a pirataria é reprimida no Brasil como ilícito civil (punido com multa) e também como crime (punido com prisão, prestação de serviços e multa criminal). Melhor seria se fosse punida somente como ilícito civil, tal como é o tratamento dado às infrações de trânsito: se alguém avança um sinal vermelho ou conduz seu veículo em excesso de velocidade, será punido com multa, mas não será processado criminalmente e muito menos preso. O mesmo tratamento poderia ser dispensado à violação de direitos autorais.

A proposta apresentada pelo governo simplesmente é OMISSA em relação à descriminalização da ‘pirataria’. Os tratados assinados pelo Brasil NÃO exigem que o Brasil criminalize a pirataria não comercial. Vejamos o que recomenda o TRIPS:

ARTIGO 61 – Os Membros proverão a aplicação de procedimentos penais e penalidades pelo menos nos casos de contrafação voluntária de marcas e pirataria em escala comercial. Os remédios disponíveis incluirão prisão e/ou multas monetárias suficientes para constituir um fator de dissuasão, de forma compatível com o nível de penalidades aplicadas a crimes de gravidade correspondente. Em casos apropriados, os remédios disponíveis também incluirão a apreensão, perda e destruição dos bens que violem direitos de propriedade intelectual e de quaisquer materiais e implementos cujo uso predominante tenha sido na consecução do delito. Os Membros podem prover a aplicação de procedimentos penais e penalidades em outros casos de violação de direitos de propriedade intelectual, em especial quando eles forem cometidos voluntariamente e em escala comercial.

Vê-se, pois, que o Brasil somente está obrigado a criminalizar a pirataria em escala comercial. A previsão atual do art.184 do nosso Código Penal que criminaliza toda e qualquer violação de direitos autorais é draconiana e necessita ser urgentemente reformada.

2. LIMITAÇÕES

Nenhum direito é absoluto. Mesmo em relação à propriedade material, a Constituição da República dispõe em seu art.5, XXIII, que ela deverá atender a sua função social. Assim, os tratados internacionais trazem permissões para que os estados signatários estabeleçam limitações aos direitos autorais, desde que atendam a determinados requisitos. A Convenção de Berna estabelece que:

‘ARTIGO 9, 2 – Às legislações dos países da União reserva-se a faculdade de permitir a reprodução das referidas obras em certos casos especiais, contanto que tal reprodução não afete a exploração normal da obra nem cause prejuízo injustificado aos interesses legítimos do autor.’

No mesmo sentido o TRIPS:

‘ARTIGO 13 – Limitações e Exceções – Os Membros restringirão as limitações ou exceções aos direitos exclusivos a determinados casos especiais, que não conflitem com a exploração normal da obra e não prejudiquem injustificavelmente os interesses legítimos do titular do direito.’

Estas limitações aos direitos do autor estão atualmente previstas no art.46 da Lei 9.610/98 e qualquer reforma que se proponha a modernizar a lei de Direitos Autorais deve prever necessariamente uma considerável ampliação destas limitações, respeitando-se o disposto nos tratados internacionais.

Pela proposta do Ministério da Cultura não mais constituiria violação de direitos autorais:

‘Art.46, I – a reprodução, por qualquer meio ou processo, de qualquer obra legitimamente adquirida, desde que feita em um só exemplar e pelo próprio copista, para seu uso privado e não comercial.’

Seria, evidentemente, um grande avanço, não fosse a surreal proposta de regulamentação para os estabelecimentos que realizam cópias xerox:

‘Art. 88-A. A reprodução total ou parcial, de obras literárias, artísticas e científicas, realizada por meio de fotocopiadora ou processos assemelhados com finalidade comercial ou intuito de lucro, deve observar as seguintes disposições:

I – A reprodução prevista no caput estará sujeita ao pagamento de uma retribuição aos titulares dos direitos autorais sobre as obras reproduzidas, salvo quando estes colocarem à disposição do público a obra, a título gratuito, na forma do parágrafo único do art. 29;

II – Os estabelecimentos que ofereçam serviços de reprodução reprográfica mediante pagamento pelo serviço oferecido deverão obter autorização prévia dos autores ou titulares das obras protegidas ou da associação de gestão coletiva que os representem.’

Garantir ao usuário a reprodução em um único exemplar para uso pŕoprio e ao mesmo tempo vedar aos estabelecimentos prestadores de serviço de fotocópia o direito de realizá-lo sem custo adicional para o interessado é o mesmo que exigir que o usuário compre máquinas de xérox para exercerem seu direito de cópia. Trata-se, portanto, de um falso avanço capaz de iludir apenas os mais incautos. Na prática, a mudança é um retrocesso, pois gerará um custo adicional aos estudantes que atualmente copiam pequenos trechos de livros, amparados no art.46, II, da atual Lei 9610/98.

3. Limitações ao ECAD

O ECAD (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição) é uma associação civil privada responsável pela arrecadação de direitos autorais devidos em função da execução pública de músicas nacionais e estrangeiras.

Se você pretende realizar uma festa de casamento ou aniversário, por exemplo, em um ambiente de 30 m², em Belo Horizonte, com música “mecânica” (sim, o ECAD ainda usa este termo) estará sujeito ao pagamento de R$229,63 ao ECAD a título de direitos autorais. Se você deseja colocar música ambiente na sala de espera de seu consultório de 10 m² em Belo Horizonte, saiba que deverá pagar R$21,13 por mês ao ECAD (simule aqui o quanto pagaria em sua cidade por estas e outras cobranças do ECAD).

Este tipo de cobrança mesquinha de direitos autorais pode perfeitamente ser limitado pela nova lei de Direitos Autorais, ainda que o projeto apresentado pelo governo seja OMISSO quanto a estas hipóteses. A execução pública de música sem fins comerciais é uma limitação aos direitos autorais perfeitamente razoável, que poderia ser incorporada em nosso ordenamento jurídico sem maiores consequências econômicas.

Conclusão

Poderiam ser elencadas aqui muitas outras propostas de ampliação das limitações dos direitos autorais capazes de serem incorporadas ao nosso ordenamento jurídico sem desrespeitar os tratados internacionais já assinados pelo Brasil. É preciso que a sociedade civil e os cidadãos interessados se unam em torno de propostas juridicamente exequíveis para que a lei seja, de fato, modernizada e não simplesmente mudada.

O caminho jurídico para esta modernização passa pela descriminalização da pirataria e pela máxima ampliação das limitações aos direitos autorais. Lutemos por estes avanços!